(Autor: Rogério Lemos Beltrão, por e-mail)
Questionar a deturpação da Doutrina Espírita é um caminho que não tem volta. Infelizmente, porém, muitos esforços sempre sucumbiram a todo tipo de recuo, por menor que seja, mas que representaram uma certa complacência aos deturpadores.
É o que se vê em muitos debates sobre a deturpação. De repente, surge alguém complacente com alguma qualidade de Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco. Uma qualidadezinha de nada, uma pretensa virtude plantada pela mídia e a pessoa - que não percebe que o mundo que ela "conhece" ela viu no Jornal Nacional - mas que garante todo tipo de ressalva. E, de ressalva em ressalva, o deturpador sai ileso e a deturpação acaba sendo salva.
O caso Humberto de Campos gerou uma aberração neste sentido. Os evidentes pastiches literários, que de tão grosseiros revelavam um estilo do "espírito Humberto" bem diferente do que o ilustre escritor produziu em vida, poderiam fazer do mito de Chico Xavier um fenômeno natimorto, quando muito só lembrado como uma pequena curiosidade pitoresca, dessas excentricidades que aparecem no Acredite Se Quiser.
Isso ocorreria se a Justiça percebesse essa disparidade entre a obra do Humberto deixada entre nós e a suposta obra "espiritual", punindo severamente FEB e Chico Xavier pela brincadeira de mau gosto. Só que não. Tudo se revelou num empate, pois nossa Justiça - na época, os ancestrais de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol só não tinham Power Point, mas tinham desvios tendenciosos de interpretação da lei, no caso mais preocupados em saber se morto tinha copyright ou não - não consegue compreender certas coisas, preferindo analisar pelo lado mais complicado (direitos autorais) do que pelo mais simples (disparidade de conteúdo).
E aí deixou-se crescer o mito de um deturpador da Doutrina Espírita dos mais cruéis. Isso a ponto do arrivista Chico Xavier conseguir conquistar (de maneira traiçoeira e indevida) a confiança (ou credulidade) da mãe de Humberto, Ana de Campos Veras, e do cético filho que lhe herdou o nome, o produtor Humberto de Campos Filho (que na Internet aparece até em foto com Hebe Camargo). Bastaram umas cartas apócrifas de Chico Xavier se passando por Humberto de Campos - às vezes o presidente da FEB, Antônio Wantuil de Freitas, colaborava nas missivas - e, quanto ao filho do escritor, levá-lo a assistir a uma palestra e a uma exibição de assistencialismo para ambos passarem a confiar no "bondoso homem".
Toda essa "bondade" se vê não só em Chico Xavier e em Divaldo Franco - cujas alegações de "caridade plena" não passam de marketing exagerado pela grande mídia, principalmente a manipuladora Rede Globo - , mas em todo suposto médium que goza do "culto à personalidade" (algo que nunca existiu nos tempos de Kardec), aquele "médium" que as pessoas hipnotizadas pela TV Globo estão acostumadas a admirar por causa da imagem do dublê de filantropo e de pensador num país marcado pelo egoísmo e pela burrice.
É uma "bondade" que ajuda muito pouco, e em muitos casos atrapalha. Chico Xavier ostentou as tragédias familiares, expondo demais seus casos e, além disso, produziu mensagens de valor duvidoso atribuídas aos mortos, pois elas apresentavam sérios problemas que puseram a veracidade em xeque.
Por outro lado, a "caridade" só serve para alimentar o carisma (ou não seria o estrelismo e a vaidade?) de "filantropos" como o próprio Chico e Divaldo Franco, aliás, tido como "maior filantropo do país" diante da gafe dele ter ajudado, em toda sua carreira, apenas uns gatos pingados que não chegaram a um por cento da população de Salvador (em níveis nacionais, então, soa mais constrangedor).
É essa pretensa caridade que garante aos deturpadores uma blindagem surpreendente. Volta-se atrás, porque fulano é "bondoso", "ajudou muita (sic) gente", "trouxe alívio (sic) para milhões de famílias", "defende a paz e a solidariedade" etc. Diante dessa complacência generalizada, daqui a pouco vão recuperar as bases originais da Doutrina Espírita com Jean-Baptiste Roustaing.
Isso é muito perigoso. Se você critica a deturpação da Doutrina Espírita, admite que Emmanuel era preconceituoso e autoritário, confronta trechos de livros de Chico Xavier e admite que eles entram em contradição com a obra de Allan Kardec, mas vê autenticidade na obra do suposto espírito de Humberto de Campos e acredita piamente que os "médiuns" Chico e Divaldo "praticam bondade", então você é emocionalmente fraco, não tem firmeza e, na crítica à deturpação, volta atrás em algum momento por causa do medo. E ter medo de gente aparentemente bondosa é mais covarde do que medo de gente violenta e autoritária.
Não dá para aceitar Chico e Divaldo por causa da suposta bondade. Os dois já são perversos o suficiente deturpando a obra trabalhosamente organizada por Allan Kardec e praticaram desonestidade doutrinária, o que lhes faz merecer o desprezo e o repúdio com base no que disse o espírito Erasto em O Livro dos Médiuns: "O que a razão e o bom senso reprovam rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar dez verdades do que aceitar uma única mentira, uma única teoria falsa".
Erasto havia dito, ainda, sobre a suposta "bondade" dos mistificadores: "Certamente eles podem dizer e dizem às vezes boas coisas, mas é precisamente nesse caso que é preciso submetê-las a um exame severo e escrupuloso. Porque, no meio das boas coisas, certos Espíritos hipócritas insinuam com habilidade e calculada perfídia fatos imaginados, asserções mentirosas, como fim de enganar os ouvintes de boa fé". Ampliemos, para nossa análise, o sentido de "dizer coisas boas" como "fazer", pois há o mesmo propósito mistificador.
Foi através da "bondade" de Divaldo Franco que se inseriu ideias absurdas como "crianças-índigo", uma sutil discriminação às pessoas com inteligência peculiar e personalidade insubmissa, que o "médium" baiano adaptou de uma farsa criada por um casal estadunidense. É assustador que os brasileiros, tão ingenuamente, aceitem essa barbaridade de "crianças-índigo" como algo "filosófico" ou "sábio", porque isso nunca passou de uma armação esotérica para um casal de desocupados que inventou esse embuste venderem mais livros e se enriquecerem (e depois brigarem e se separarem).
Somos muito ingênuos e fingimos aceitar os conselhos de Erasto. Mas é só ver imagens de crianças pobres tomando sopa, com um fundo musical piegas, para sermos seduzidos ao canto-de-sereia dos deturpadores da Doutrina Espírita que querem "compensar" desonestidade doutrinária com "bondade".
Vejam em que enrascada os complacentes entraram, que é aceitar que a bondade seja cúmplice da desonestidade doutrinária. Permitir que deturpadores sejam mantidos no pedestal e até "aproveitados", não se sabe como, num esforço de recuperação das bases doutrinárias kardecianas. Isso mostra os resíduos de fanatismo religioso e deslumbramento infantil que toma conta das pessoas no Brasil, e mesmo aqueles que se esforçam em defender a lógica e o bom senso se tornam emocionalmente fracas.
Daí que, nos debates que questionam a deturpação da Doutrina Espírita, muitos se fraquejam e perdem a vigilância e a coragem necessárias para dar xeque-mate a certos totens. O sentimentalismo frágil e piegas acaba com qualquer vontade de raciocinar e buscar a lógica, e diante disso tudo fica como está. Nunca deturpar a Doutrina Espírita foi tão fácil no Brasil!
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