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Filme joga frase de Allan Kardec contra suas próprias ideias


(Autor: Professor Caviar)

As artimanhas da deturpação do Espiritismo, no Brasil, são tantas que todo o malabarismo discursivo que o "movimento espírita" trabalha em todos os aspectos fazem com que, dependendo de tais interpretações, seja possível jogar o codificador Allan Kardec contra o que ele mesmo havia sido na realidade.

Essa denúncia é gravíssima e o exemplo mais preocupante é a produção Kardec - O Filme, de Wagner de Assis, que aborda a biografia do pedagogo francês sob o ponto de vista dos deturpadores. Em depoimentos contraditórios, os atores Leonardo Medeiros e Sandra Corveloni, que respectivamente interpretam Allan Kardec e sua esposa Amélie Gabrielle Boudet, declaram que as ideias científicas do professor francês "eram próprios da época em que viveu" e que não seria possível "julgá-las com os olhos de hoje".

Essas declarações soam confusas e dão a crer que o igrejismo de Francisco Cândido Xavier - este, sim, um sujeito retrógrado, nascido de uma família saudosa do Segundo Império e formado pelo Catolicismo medieval - é "mais moderno" que o de Kardec, o que é uma incoerência. Afinal, os livros de Chico Xavier apontam retrocessos valorativos diversos e uma fuga completa dos ensinamentos originais da obra espírita, que recomendava o respeito à lógica e ao bom senso, inexistentes nos livros do "médium" brasileiro.

O aspecto mais grave que vamos mencionar é quanto à frase dita pelo personagem Kardec, no filme: "A fé inabalável é aquela capaz de enfrentar sem temor a Razão. Essa é a mais pura verdade". De fato, essa frase vem de Allan Kardec, mas ela é descontextualizada e manipulada de tal forma que ela vai contra justamente o que o pedagogo francês recomendava.

A frase é dita, no filme, de forma a fazer os brasileiros considerarem a supremacia da Fé sobre a Razão, apostando na "fé cega", nunca assumida no discurso mas praticada pelos "espíritas" sobre o termo "fé raciocinada" (uma tradução equivocada do termo francês "foi raisonée").

A prática "espírita" brasileira, a partir de Chico Xavier, é uma coleção infeliz de demonstrações de fé cega, de beatitude católica enrustida, que faz do "espiritismo" brasileiro um paraíso para os sofistas modernos, capazes de usar o discurso para desviar ideias do seu sentido original, usando falácias que podem usar a "religiosidade" e o "conhecimento" para substituir o cientificismo kardeciano pelo igrejismo dos deturpadores, sem dar a impressão dessa vergonhosa traição doutrinária.

O QUE REALMENTE DIZ KARDEC

Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, na tradução de José Herculano Pires, no Capítulo 19, "A Fé que Transporta Montanhas", há um segmento intitulado "A Fé Religiosa - Condição da Fé Inabalável", na qual Kardec, embora tenha encerrado o referido texto com a tal frase - no livro, "só é inabalável a fé que pode enfrentar a razão face a face, em todas as épocas da Humanidade" - , ele estabelece restrições para a fé a ser manifesta pela pessoa.

Os adeptos de Chico Xavier se sentem incomodados quando há um outro trecho desse livro, considerando que o "médium" dava preferência à Fé sobre a Razão (o que demonstra uma inclinação não assumida à "fé cega", defendida sob o eufemismo do "olhar do coração"), que diz:

"É precisamente o dogma da fé cega que hoje em dia produz o maior número de incrédulos. Porque ela quer impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: a que se constitui do raciocínio e do livre-arbítrio".

Se compararmos a obra de Chico Xavier, ela se contradiz com a de Kardec, porque este coloca a Razão como prioridade, embora considerasse a validade da religião, enquanto o outro apela para a ênfase na Religião sobre a Razão, criando discursos que tentem discordar do pensamento kardeciano sem no entanto esboçar uma discordância aberta, mas antes exprimindo uma falsa concordância. Vejamos o que, no livro Emmanuel, de 1938, no Capítulo IV, "A Base Religiosa", no qual o subtítulo escolhido é "O Tóxico do Intelectualismo", eufemismo para a condenação do jesuíta, corroborada pelo "médium", ao senso crítico mais apurado. A retórica engana, vejam só:

"O sentimento religioso é a base de todas as civilizações. Preconiza-se uma educação pela inteligência, concedendo-se liberdade aos impulsos naturais do homem. A experiência fracassaria. É ocioso acrescentar que me refiro aqui à moral religiosa, que deverá inspirar a formação do caráter e do instituto da família e não ao sectarismo do círculo estreito das igrejas terrestres, que costumam envenenar, aí no mundo, o ambiente das escolas públicas, onde deverá prevalecer sempre o mais largo critério de liberdade do pensamento".

Desconfiemos desse "largo critério de liberdade do pensamento". Emmanuel (ou Chico Xavier, se observarmos a tese de que o próprio "médium" também escreveu da sua mente as obras do jesuíta) mexia com expressões abstratas, enganando os leitores com um falso apoio as ideias, no enunciado, onde palavras de conceitos vagos prevalecem, enquanto, no desenvolvimento de conteúdo de ideias, se revela um repúdio severo à ideia enunciada.

Dessa maneira, Emmanuel / Chico Xavier fingiam apoiar o comunismo, sob a condição deste se submeter aos princípios de "fraternidade cristã" (eufemismo para Catolicismo medieval). Nota-se que o texto condena a "educação pela inteligência" (que considera destinada ao fracasso) e estabelece a prevalência da religião, usando a retórica da "moral religiosa" em detrimento das "igrejas terrestres" como meio do "espiritismo" brasileiro se impor pela fé, lembrando que o "espiritismo" é uma espécie de "camaleão religioso", que às vezes se traveste de "filosofia", de "não religião" e até de "ciência", para vender o seu obscurantismo religioso - através das ideias medievais de Chico Xavier - sob o rótulo de "ciência filosófica".

Vale lembrar que a falácia de "liberdade do pensamento", assim vagamente descrita, é defendida também pelo ministro da Educação do governo Jair Bolsonaro (que defende os mesmos valores ultraconservadores de Chico Xavier, menos as ações violentas), Abraham Weintraub, que incluiu o "respeito à liberdade e diversidade do pensamento" entre as diretrizes de sua gestão, fundamentada na Escola Sem Partido.

"A meta tem que ser o aluno ler e escrever. A meta tem que ser todo jovem que queira fazer o ensino técnico, que possa fazer o ensino técnico. Não pode ser o meio", disse Weintraub num encontro com jornalistas em Brasília, em 14 de maio de 2019, como se estivesse incorporando Emmanuel. No dia seguinte, 15 de maio, Weintraub foi alvo de protestos em todo o Brasil pela decisão do ministro em cortar verbas para a Educação pública, comprometendo todos os setores do ensino, pesquisa e extensão.

TRADUÇÃO ERRADA

O que se observa é que o termo francês "foi raisonée" foi traduzido de maneira equivocada, usando o dúbio e duvidoso termo "fé raciocinada". Numa busca do Google Tradutor, é irônico que esse mecanismo esteja equivocado na maioria das vezes, porque, neste caso, a tradução acaba sendo mais acertada: "fé fundamentada".

"Fé fundamentada" é bem mais correto e exato do que "fé raciocinada". O termo "fé raciocinada" foi lançado por traduções igrejeiras como a de Guillon Ribeiro, da FEB. Talvez fosse um pequeno lapso de Herculano Pires de não ter trocado a expressão, acreditando, por boa-fé, que o termo "fé raciocinada" fosse a fé que passasse pelo exame da Razão.

No entanto, o termo "fé raciocinada" é claramente ambíguo. Pode ser a Fé que passou pelos exames da Razão, mas pode também ser a Fé que usa a Razão para se legitimar, mesmo em prejuízo da lógica e do bom senso. Isso trouxe problemas e fez com que os deturpadores saíssem festejando em todo o Brasil, com seu obscurantismo religioso, que põe a Fé acima da Razão, que julgam ser "sustentado pela ótica da Razão", que presunçosamente alegam "ser tratada com o necessário equilíbrio".

O termo "fé fundamentada", inclusive, traz a verdadeira natureza da Razão, como um processo em permanente evolução, do contrário da "fé raciocinada", que põe o processo como "concluído". A Fé, quando fundamentada, ela precisa ser posta à prova dos argumentos racionais, precisa ser pensada e questionada. No caso da fé que foi raciocinada, supõe-se que não é preciso mais pensar a seu respeito, porque é ideia consumada, ao passo que a fé que é fundamentada, no entanto, precisa ser provada com argumentos lógicos que surgem a cada impasse entre Fé e Razão.

ESPIRITISMO, NO BRASIL, VIROU RELIGIÃO DESONESTA

Os espíritas autênticos que, no Brasil, combatem a deturpação, não conseguem ter pulso firme para contestarem os deturpadores porque o esforço para na metade. Quando se ressalta o caráter religioso dos deturpadores e seu suposto envolvimento com a filantropia - dentro dos moldes do Assistencialismo, embora creditado como "Assistência Social" - , os combatentes da deturpação se afrouxam, e falham diante da esperteza dos deturpadores (incluindo, sobretudo, Chico Xavier) que querem uma "confraternização" em causa própria, a "fraternidade das raposas com as galinhas", sob o pretexto de que o perdão e a misericórdia lhes fosse uma concessão a seus abusos.

Com isso, os deturpadores do Espiritismo que atuaram ou atuam no Brasil - lembrando novamente, incluindo Chico Xavier - prometeram a recuperação das bases doutrinárias kardecianas, algo que só fizeram da boca para fora, e muito mal, enquanto faziam brechas de interpretação para jogar as ideias de Kardec em favor do seu igrejismo medieval e contra os próprios postulados originais.

Desse modo, o Espiritismo é associado, infelizmente, a um processo de manobras discursivas das mais habilidosas, armadilhas das mais traiçoeiras, que fazem com que se configurasse uma religião brasileira que repaginasse o Catolicismo medieval (introduzido no Brasil no século XVI pelos jesuítas), mas que sempre desse a falsa impressão de que os postulados científicos do pedagogo de Lyon estão inteiramente respeitados.

Daí que o que se conhece como Espiritismo, no Brasil, é a religião mais desonesta do país, senão a do mundo. É porque nessa religião, mais do que qualquer outra, mais do que a pior das demais religiões, se manifesta a desonestidade intelectual, com o uso abusivo de falácias, à maneira dos antigos sofistas do tempo de Sócrates, e de obscurantismos da fé, à maneira dos antigos escribas do tempo de Jesus, que é justificada o tempo todo pelas desculpas de "liberdade religiosa" e "exercício da caridade", como se justificassem os desvios doutrinários com isso.

Por isso é um grande perigo a atuação dos inimigos internos do Espiritismo, que hoje praticamente dominaram o legado de Allan Kardec e se acham donos deles. Isso é assustador. Ver deturpadores como Chico Xavier com uma alta reputação é coisa deplorável, e ver que os "espíritas" brasileiros se acham os donos da Razão, ainda que não adotem essa postura no discurso, mostra o quanto a ação dos inimigos internos encontrou terreno fértil num Brasil desinformado e emocionalmente vulnerável.

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