(Autor: Professor Caviar)
As forças progressistas, consideradas movimentos sociais de esquerda, cometeram um ato falho quando acolheram o "funk" e o "espiritismo", levados pela aparente apreciação da pobreza trazido por esses dois fenômenos, na verdade apoiados pela sociedade ultraconservadora que retomou o poder em 2016.
Esse ato falho se deu nos casos de Nosso Lar e das favelas, nas quais as esquerdas caíram numa confusão grave de abordagem, se esquecendo das sutilezas dos discursos do ritmo popularesco e da religião igrejeira, que por trás do aparato "progressista" das suas retóricas, estavam escondendo, na verdade, uma abordagem extremamente conservadora.
No caso do "funk", as esquerdas se esqueceram que a espetacularização da pobreza, da ignorância, do mau gosto e de outras situações problemáticas como a prostituição, a residência em barracos mal construídos, o alcoolismo e o subemprego não eram expostos como denúncia, porque o "funk" em nenhum momento ofereceu respostas a esses problemas e no seu discurso sempre apostava numa visão ufanista das periferias e dos subúrbios.
Durante anos, intelectuais ligados à grande mídia, mas aparentemente migrando para veículos da mídia de esquerda espalharam um discurso estranho no qual a pobreza era vista como "admirável", como um estranho "paraíso" no qual pessoas de baixa ou nenhuma escolaridade eram vistas ao mesmo tempo como "ingênuas" e "combativas", enquanto práticas como a prostituição, o comércio clandestino, a precarização do emprego e a moradia precária das favelas eram encaradas de maneira "positiva" por essa ideologia que, supostamente, pregava o "combate ao preconceito" contra a "cultura do mau gosto".
Sabe-se que esse "combate ao preconceito", pregado pelas mais preconceituosas elites intelectuais, supostamente amigas dos pobres mas amigas da pobreza em detrimento da população pobre, se revelou uma conversa furada. As elites achavam lindo ser pobre, viver em barracos caindo aos pedaços, ter que dormir sob o barulho dos tiroteios, viver de subemprego vendendo produtos piratas ou contrabandeados e ainda levar dura de fiscal do governo, e prostituta vender o corpo e ainda levar surra dos fregueses machões.
Isso é "romper com o preconceito"? Não. O "combate ao preconceito" foi uma falácia só para ampliar o mercado de tendências musicais e comportamentais de valor extremamente duvidoso, foi apenas uma retórica mentirosa trazida em uníssono por intelectuais, jornalistas, cineastas, artistas e famosos que circulam nas colunas sociais ao lado de empresários, socialites, profissionais liberais, executivos de mídia, mas que queriam parecer simpáticos e cool militando ao lado de esquerdistas.
A pregação usou como carro-chefe o "funk", embora usasse também o "brega de raiz", tipo Waldick Soriano e Odair José, e o "sertanejo" de Zezé di Camargo & Luciano, entre outros. A falsa imagem "progressista" do "funk" iludiu as esquerdas, que se confundiram entre a pobreza glamourizada pelo ritmo e a miséria exposta como falsa denúncia, sem que algo melhor pudesse ser trazido.
E tudo isso através de um ritmo cujos críticos acusam de sofrer um "rigor estético por baixo", proibindo a execução de instrumentos musicais e se limitando a uma fórmula sonora que é igual a todos os intérpretes a cada temporada. A desculpa do "discurso direto" e da "pureza sonora das periferias" revela essa mediocrização cultural e imbecilização temática do "funk", que sob a desculpa do "empoderamento sexual" investe na erotização estereotipada pelo grotesco.
NOSSO LAR NADA TEM A VER COM "COMUNIDADE SOCIALISTA"
Alguns "engraçadinhos" espalharam na Internet, usando de toda a falácia travestida de tese intelectual - eles adotam até "referências bibliográficas", usando o método da ABNT - , de que a fantasiosa "cidade espiritual" de Nosso Lar seria um "modelo brasileiro de cidade socialista ou comunista", procurando enganar as esquerdas deslumbradas com a suposta filantropia desse "espiritismo" igrejeiro e medieval.
Isso é fake news, conforme se costuma usar na Internet. Nosso Lar nunca foi uma "comunidade socialista" ou "sociedade comunista". Além de ser uma "cidade espiritual" feita sem qualquer fundamento científico, a partir das fantasias de Francisco Cândido Xavier a partir do que se leu em A Vida Além do Véu (The Life Beyond the Veil), ela está mais próxima de um condomínio de luxo e só porque há uma solidariedade entre seus habitantes, isso não significa que seja socialismo. Se fosse assim, até Monte Carlo, o reduto de milionários da Europa, seria uma "cidade socialista", pela solidariedade que seus habitantes têm entre si.
As esquerdas acolheram, na boa-fé, Chico Xavier pelos aparatos de "filantropia" - mais próximos do que se vê nos "trabalhos sociais" de Luciano Huck - e adotam uma postura muito confusa diante das pregações do "médium" a respeito de "vida futura" ou do projeto "Brasil Coração do Mundo, Pátria do Evangelho", ignorando que este apela para a fórmula tirânica de um país dominando o mundo pela política e pela religião, combinando o Império Romano e o Catolicismo medieval.
Sem se darem conta do ultraconservadorismo de Chico Xavier - que sempre pedia para os sofredores aguentarem em silêncio suas próprias desgraças, sem sequer demonstrar suas agonias a outrem - , os esquerdistas, tão tolamente, acham que a chamada "Pátria do Evangelho" seria governada pelo PT e que Nosso Lar seria um modelo de "sociedade progressista". Quanta ingenuidade!
A ideia de "vida futura" é escapista. O projeto da vida presente de Chico Xavier é bolsonarista: desperdiçar toda a juventude e vida de vigor com trabalho exaustivo, servidão submissa, renúncia aos benefícios (como encargos trabalhistas, por exemplo) e conformação com tragédias e humilhações vividas. A "vida futura" seria um elemento externo, no qual não se tem ideia precisa do que realmente é, com um "mundo espiritual" cuja definição é um mistério e uma reencarnação que não garante as mesmas condições de vida da encarnação presente.
Não é difícil imaginar que Chico Xavier defendeu, com gosto, a ditadura militar, e foi premiado como o "guru" de seu período. O pensamento desejoso dos esquerdistas tentou relativizar o apoio do "médium" aos militares, mas em vão: Chico Xavier apoiou a ditadura militar porque, como sujeito ultraconservador, ele se identificou com seu projeto político, e, embora condenasse a violência, ele acreditava em "resgates espirituais" no que se refere às tragédias que vitimam pessoas inocentes. Chico seria, com toda a certeza, bolsonarista.
CONFUSÃO AINDA PIOR
O problema é que as esquerdas adotam uma confusão ainda maior ao acolherem "funk" e "espiritismo". Ao mesmo tempo em que consideram favelas "paraísos progressistas", acham que a "vida futura" corresponde à "vida presente" para "daqui a pouco". Não conseguem perceber contextos nem cenários e sua confusão temporal atrapalha suas abordagens, que em outras ocasiões soam exemplares, como as críticas aos abusos de políticos e jornalistas reacionários.
Não há um fundamento teórico, uma base conceitual e, além disso, as abordagens carecem de contexto quanto ao tempo e lugar. As esquerdas ignoram que a favela do "funk" é um cenário permanente e o "paraíso espírita" de Nosso Lar é um lugar tão externo quanto o exílio que os governos autoritários reservam a seus opositores.
Mas Nosso Lar também não é uma cidade socialista, estando mais próxima de uma visão idealizada de um bairro da Zona Sul carioca, ou talvez da "Zona Sul" redimensionada pela Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes. São cidades "prósperas" que nem por isso são socialistas, podendo ser redutos de pessoas elitistas e conservadoras. Além disso, o livro Nosso Lar mostra uma "dicotomia" de Nosso Lar, a "luxuosa cidade", e o "umbral", a estereotipação da "periferia".
As esquerdas, que precisam muito ler os livros do sociólogo Jessé Souza, estão perdidas nessa dicotomia "corpo X espírito" que legitima tanto os preconceitos trazidos pelo "funk" quanto pelo "espiritismo", como uma moeda de duas faces em que num lado está o moralismo "espírita" e, noutro, a licenciosidade do "funk".
Em ambos os casos, os esquerdistas saíram enganados e é por isso que caíram nas armadilhas discursivas que abriram caminho para Michel Temer, Jair Bolsonaro e companhia. Esperava-se que o ufanismo da "periferia legal" fosse trazer a emancipação popular, e só trouxe as forças policiais, militares e paramilitares para atirar a esmo contra os favelados. E esperava-se que a "Pátria do Evangelho" recolocaria o PT no poder, se esquecendo da analogia semiótica de "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" com o lema bolsonarista "Brasil, Acima de Tudo, Deus, Acima de Todos". É hora de se deixar o pensamento desejoso de lado.
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