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Compromisso do "espiritismo" brasileiro não é com a verdade, é com a dramaturgia


(Autor: Professor Caviar)

O "espiritismo" brasileiro possui uma narrativa "fofa". Conta a história de um pedagogo francês, que usou a alcunha de Allan Kardec, que descobriu fenômenos mediúnicos e resolveu lançar livros a respeito, e, no Brasil, suas ideias foram acrescidas de religiosidade cristã e aparente filantropia e tudo reina na paz dos jardins floridos, céus ensolarados com nuvens brancas e crianças sorridentes, algumas negras e pobres, dançando juntas "Ciranda Cirandinha".

Tudo isso parece realista e objetivo aos olhos dos deslumbrados seguidores ou mesmo de simpatizantes "não-sectários", apesar da forte carga emocional e sonhadora. E essa narrativa que pega desprevenidos até intelectuais com alguma seriedade e jornalistas com algum senso investigativo, parece vir de enredo de novela.

E vem mesmo. A imagem que temos, por exemplo, de um Francisco Cândido Xavier "meigo e caridoso", o "querido Chico Xavier" dos seus devotos deslumbrados e dos "isentos" simpatizantes preocupados em blindá-lo "apesar das imperfeições e falhas", é uma construção digna da dramaturgia televisiva.

Essa narrativa, que tem uns 40, 45 anos, e foi reforçada pelo discurso persuasivo da Rede Globo - que chega a contaminar não só a mídia concorrente (como SBT e Band) mas também canais da TV paga ou mesmo a mídia alternativa (Brasil 247) - , foi montada no Brasil sob inspiração no que o inglês Malcolm Muggeridge fez com Madre Teresa de Calcutá.

São narrativas de valor bastante discutível e duvidoso, mas que se tornam "indiscutíveis" pela carga emocional com que se trabalham os termos "humildade", "amor ao próximo", "solidariedade", "perseverança", "esperança" e "paz".

Essa ideologia, que agrada a muitos e faz gente grande dormir tranquila, é uma falácia na qual se usam os artifícios do "bombardeio de amor", um tipo perigoso de manipulação da mente humana, cujo caráter, maléfico e traiçoeiro, é conhecido no Primeiro Mundo, mas é uma novidade no Brasil. E é tão novidade que o chamado "idiota da Internet" costuma dizer, de maneira mais debiloide possível:

"Puxa, cara, se há bombardeio de amor, é porque é sempre coisa boa. Show de bola, véio. Cara, na moral, se o bombardeio de amor existe, então que venham mais bombardeios de amor, porque assim a gente espalha paz e amor pra toda a galera da Terra, tá ligado?".

O "bombardeio de amor" (do inglês love bombing) simula apelos de afetividade, de poesia e de beleza bastante profundos. Seduz os incautos apresentando paisagens floridas, céus ensolarados dos quais as nuvens servem de cortejo para os raios solares e, institucionalmente falando, essa tática cruel consiste num simulacro de afeição extrema e até de pretensa intimidade, feito para dominar as pessoas que aderem a determinadas seitas e religiões.

O desconhecimento dessa armadilha, considerada uma das mais traiçoeiras pelos mais renomados analistas de linguagem do mundo inteiro, permite que o "espiritismo" brasileiro, com uma trajetória arrepiante de deturpação e de traições doutrinárias em relação aos ensinamentos originais de Allan Kardec, tenha uma narrativa "limpa" que se torna o "currículo oficial" dessa doutrina que nasceu traindo o pedagogo francês com o igrejismo de J. B. Roustaing, mais tarde adaptado em Chico Xavier.

A narrativa que prevalece hoje não é muito antiga, porque, antes de 1974 o "espiritismo" brasileiro era alvo de escândalos bastante vergonhosos, vários deles envolvendo o próprio Chico Xavier, contra o qual pesa acusações de que sua psicografia sempre foi fake, acusação que surpreendentemente possui provas consistentes e irrefutáveis.

Toda essa sujeira foi jogada debaixo do tapete, em favor de uma historiografia "enxuta e agradável", que poderia ser digerível apenas por pessoas de baixo senso crítico e ideologicamente mais conservadoras, mas alcança até mesmo setores quase arrojados dos movimentos progressistas e de intelectuais com algum senso crítico afiado, mas que "brocham" diante do mito, concebido em linguagem de contos de fadas, do próprio Chico Xavier.

CONTOS DE FADAS E FICÇÃO NOVELESCA

Infelizmente, o Brasil tende a ver a realidade com uma visão simplória e binária trazida pela dramaturgia. Foi isso, por exemplo, que permitiu a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro, ele mesmo sendo vendido como se fosse um "justiceiro" de uma reprise de um enlatado estadunidense no Domingo Maior. Bolsonaro foi vendido como se fosse um "herói perdido" de Os Mercenários (The Expendables), que prometia "varrer o inimigo comunista" e "resolver a crise" no nosso Brasil.

Temos uma agenda televisiva. E, nela, Chico Xavier aparece como o "velhinho inocente" de um núcleo de idosos da novela das nove, como se, em vez de Nelson Xavier ter interpretado o "médium", foi este que na verdade passou a interpretar os idosos que o falecido ator ultimamente interpretava na dramaturgia televisiva da Rede Globo. Sim, isso mesmo: para os brasileiros, não foi Nelson Xavier que passou a interpretar Chico Xavier, mas foi Chico Xavier que muitos queriam ver no "papel" de Nelson Xavier, mesmo os esquerdistas que inserem o "médium", simbolicamente, na ficção combativa de Os Fuzis, filme de 1964 dirigido por Ruy Guerra.

O "espiritismo" brasileiro é uma grande novela da Rede Globo. Seu "Allan Kardec" - a receber uma narrativa igrejeira através do longa-metragem Kardec - O Filme - mais parece um europeu estereotipado que aparece no primeiro capítulo ou na primeira fase de uma novela "épica" nos moldes de Terra Nostra. Nem de longe o "Kardeque da Globo" lembra o verdadeiro pedagogo francês que estava preocupado com a deturpação do seu legado.

A narrativa do que oficialmente é a "Doutrina Espírita" envolve apelos dignos de contos-de-fadas, principalmente quando chega a figura de Chico Xavier, cuja blindagem que recebe é de fazer inveja aos políticos do PSDB. Afinal, o sujeito era um deturpador gravíssimo que fez o que quis com a memória dos mortos, famosos ou não, usurpando seu legado em causa própria e usando-os para defender as ideias reacionárias do "médium" (cujo ultraconservadorismo tinha um apetite bolsomínion), mas Chico Xavier foi beneficiado por uma "narrativa limpa" que o faz um personagem de contos de fadas com uma imagem tão sonhadora e piegas do "velhinho humilde que ajudou o próximo".

Isso não é a verdade realista. Mas, infelizmente, a fantasia encontra, no "espiritismo" brasileiro, um terreno onde manda e desmanda. Com medo de serem desmascarados, os "espíritas" estão apelando para a falácia, dita com irritada (e irritante) persistência, dos "médiuns imperfeitos", que no entanto se encaixam com o contexto de banalização de erros de Jair Bolsonaro, sua equipe ministerial, seus familiares e adeptos.

Dessa maneira, cria-se uma narrativa de "simplicidade e imperfeição" que cria zonas de conforto para pessoas que não abrem mão da idolatria divinizada aos "médiuns" - uma aberração exclusiva no Brasil, porque na França os médiuns sempre foram figuras semi-anônimas, que faziam um trabalho meramente intermediário e não se passavam por "filantropos" nem por "mensageiros religiosos" - , ainda que essa adoração extrema seja disfarçada pelo verniz da "imperfeição" e da "falha".

VISÃO VICIADA

A narrativa do "espiritismo" brasileiro, diante do aparente senso comum no nosso país, se situa na zona de conforto de informações vagas, mitificadoras e mistificadoras, uma "historiografia tranquila" que lembra muito o que havia sido feito com os livros didáticos de História do Brasil num tempo de Educação ultraconservadora e hierarquizada.

A "história do Espiritismo" possui pretensos heróis, seus conflitos são "externos" e a figura do inimigo interno nem de longe é mencionada. Em vez disso, se superestima os aparentes conflitos com a Igreja Católica, narrados de maneira maniqueísta. Isso ignora verdades complexas como o fato de que Chico Xavier era um católico tão ortodoxo quanto o de seus "inimigos" Gustavo Corção e Alceu Amoroso Lima, que denunciou Parnaso de Além-Túmulo como "farsa criada por editores da FEB".

O caso mais irônico é que Alceu Amoroso Lima (conhecido pelo pseudônimo Tristão de Athayde) acabou levando vantagem sobre o "médium". Se ambos professaram a Teologia do Sofrimento, ela se tornou atenuada em Alceu, que teve o mérito de se opor à ditadura militar enquanto o "médium", tido como "moderno" e "progressista", continuou expressando seu reacionarismo ideológico até o fim.

Os males do "espiritismo" brasileiro são escondidos de tal forma que, quando "médiuns" emergentes aparecem, se enfatiza seu aparente desvínculo doutrinário. Foi assim com Zé Arigó, que dizia receber o espírito do médico alemão Dr. Adolph Fritz, acusado de exploração financeira de suas atividades, e, recentemente, com o goiano João Teixeira de Faria, o João de Deus.

Todavia, esquecemos que Chico Xavier cometeu atrocidades e virou réu pela usurpação que ele fez à memória de Humberto de Campos. Foi um ato de leviandade cujo resultado são obras fake que nem de longe lembram o autor maranhense.

Mas como sabemos que Chico Xavier vendia muitos livros, ele é blindado de tal maneira que até os erros que ele cometeu não se atribui, oficialmente, culpa alguma. Seus partidários - uns se dizendo "não-sectários" para dar a falsa impressão de "imparcialidade" - apenas dizem que "o médium errou", dentro daquele igrejismo de dizer que "ele caiu e se levantou". 

Mas a verdade é que interesses financeiros, sob o pretexto da "caridade", existem e Chico Xavier, que em vida combinava a esperteza de Aécio Neves, o reacionarismo de Jair Bolsonaro e a pretensa filantropia de Luciano Huck, tornou-se a figura mais blindada do Brasil, desencorajando a investigação e o questionamento necessários à sua figura, para o bem de uma ilusão que pretende se manter para que se permaneça a falsa estabilidade de um país desastrado como o Brasil.

Assim, contrariando os conselhos de Allan Kardec, que, sobre os deturpadores espíritas, "era melhor que caísse um homem do que caísse uma multidão", se preferiu acreditar que "era melhor cair um Brasil inteiro do que caísse Chico Xavier". E os brasileiros nem precisam mais ver novelas, que, por sinal, andam perdendo audiência. A realidade brasileira já virou uma "novela da Rede Globo", com Chico Xavier no papel de "bom moço".

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