
(Autor: Professor Caviar)
Nunca saímos de 1979, fim do governo do general Ernesto Geisel. Ficamos prisioneiros dele. Defendemos um Brasil que fazia sentido no seu período de governo, entre 1974 e 1979, mas como ele deixou de fazer sentido quatro décadas depois, nós nos tornamos terraplanistas de nossa realidade, nosso realismo tornou-se surreal, nosso desejo de estabilidade se tornou uma psicose.
Fora da mesmice das redes sociais, as pessoas apontam que a chamada Era Geisel é vista pelas elites, não de forma assumida, mas como que num segredo de polichinelo, como um período em que o Brasil atingiu um "nível ideal", sobretudo para os meiotermistas de plantão. Uma sociedade "mais ou menos", não muito autoritária (em tese, pois Geisel mandava brasa nos bastidores, segundo revelações recentes) mas não muito democrática, não muito próspera mas (também em tese) longe de ser decadente.
É aquele paraíso dos "isentões" que, completamente ignorantes, bancam os "intelectuais de Internet". Defendem sempre a realidade "mais ou menos", sempre dentro daquela falácia enjoada: "É certo que o fenômeno tal tem seus defeitos, muitos até, mas não creio que mereça um questionamento assim tão enérgico. Além disso, eu acho que dá para conviver muito bem com esses problemas, eu por exemplo não vejo problema algum com isso". Os mais atrevidos escrevem essa pasmaceira toda em blogs, com aparato de monografia, com referências bibliográficas e tudo.
O atual pesadelo bolsonarista em que vivemos é resultante do apego doentio a esse passado ao mesmo tempo autoritário e supostamente democrático. A neurose desse apego esteve em 2018, quando se preferiu a candidatura de Jair Bolsonaro para a Presidência da República, em vez de outros candidatos neoliberais, até mais palatáveis para o mercado, como Geraldo Alckmin e Henrique Meirelles. A paranoia de voltarmos a 1974-1979 é tanta que um dos ídolos supostamente cult da atualidade é a cantora Gretchen, lançada naquela época.
Num país em que a sociedade dá piti quando se fala que velhos feminicidas dos anos 1970 estão perto da morte - constatação com base em dados científicos - , isso significa o quanto conservador ainda está o Brasil. Tão conservador que as esquerdas daqui, diferente das dos nossos vizinhos hispano-americanos, prefere a religiosidade e o entretenimento em vez da mobilidade social.
Temos uma "cultura" que é voltada ao sensacionalismo barato, ao grotesco, ao piegas. Nossa imprensa é uma das piores do mundo. Executivos da mídia ditam as gírias que o povo tem que falar, temos um "vocabulário de poder" que é absorvido sem questionamentos pelo nosso "gado humano" que faz efeito manada nas redes sociais. Há um apreço maior ao pitoresco e a dignidade humana é deixada em segundo plano. E as pessoas ainda aceitam retrocessos, desgraças, sordidezas, corrupções (desde que não seja de esquerda), escândalos e tragédias porque isso "traz alguma graça na vida".
As pessoas não conseguem mais esconder seu racismo, seu machismo, sua misoginia, sua misandria, suas neuroses sociais cruéis, que, em casos extremos, sempre impelem à violência incurável, ao ódio extremo, um ódio que só consegue encontrar um suposto contraponto num "amor-daçar" religiosamente conservador e forçadamente conciliador, promovendo a "paz" entre opressor e oprimido sem resolver os motivos de tamanhas injustiças.
O Brasil é tão conservador que os jovens considerados "mais descolados" ouvem velhos hits dos anos 1970, com direito a transformar Bee Gees em algo que não se pode criticar uma vírgula sequer. É constrangedor ver o Facebook e o WhatsApp e observar pessoas de 45 anos para menos falarem como se fossem velhotes reacionários de 40 anos atrás.
AH, TEM A ADORAÇÃO A CHICO XAVIER, É CLARO
Esse apego a um Brasil que hoje cheira a mofo - pelo jeito, os brasileiros perderam o olfato - é uma doença social inconsciente, que pega de surpresa muita gente aparentemente normal, mas que em seus surtos preferem a zona de conforto de um país "mais ou menos" no qual, em tese, "dá para viver". Essa é uma sensação perigosa, porque nessa realidade caótica, que atinge níveis de desigualdades e injustiças surreais, que começa a cobrar preço caro até para os "isentões" que ficam "filosofando a favor do estabelecido".
E é claro que o "espiritismo" brasileiro, que aqui não tem sequer a sombra do iluminismo progressista de Allan Kardec, apesar de toda a viscosa bajulação em torno de seu nome, não poderia estar de fora desse Brasil embolorado que tenta resistir ao tempo, nem que seja sob o preço de seminários "machonaristas" e "terraplanistas" de pessoas que acham que a ignorância é uma "bênção".
Um sujeito que produziu literatura fake, arrumou muita confusão e participou de fraudes de materialização e outras práticas ilusionistas, chamado Francisco Cândido Xavier, só pode ser considerado "médium sério" num país terraplanista como o Brasil. Só mesmo um contexto de mediocridade, de um incurável "complexo de vira-lata", para reconhecer algo sublime numa figura de trajetória irregular como Chico Xavier.
A ditadura militar e a Rede Globo se aproveitaram dessa ignorância que endeusa um deturpador religioso e fraudador literário - a vida de Chico Xavier, que foi um plagiador (com a colaboração de uma grande equipe na FEB, não vamos nos esquecer), mais parece um plágio de um roteiro de comédia surreal do Monty Python - para tentar segurar o regime dos generais com um pretenso filantropo e "líder ecumênico" palatável para contextos laicos.
Chico Xavier foi a carta na manga da ditadura militar, seja para afastar os pastores eletrônicos por meio de um suposto ídolo ecumênico, seja para neutralizar a popularidade de Lula. Sim, caros leitores: Chico Xavier foi anti-Lula e anti-petista, numa postura ainda mais severa e mais convicta do que imaginam as pessoas, presas ao pensamento desejoso, outra praga desse Brasil "mais ou menos" que se torna prisioneiro da Era Geisel.
São apegos doentios que fazem com que o primeiro internauta contrariado, em vez de parar para pensar as coisas, reagir pelo impulso de suas convicções e escrever o que não deve com toda aquela roupagem pseudo-intelectual de pessoa que, "sem querer querendo", "busca a posse da verdade sem querer ser o dono da verdade". É o tipo de sujeito que transforma o cérebro num órgão a serviço do seu umbigo, o verdadeiro aparelho central do seu organismo.
Há muita gente defendendo a mediocridade, patrulhando o estabelecido, gente que nem nasceu na Era Geisel mas parece que foi feliz nessa época, com tanta convicção que defende os valores análogos a esse período, mas que muitos pensam estar "acima dos tempos". A efemeridade do Brasil de Geisel torna-se perene aos olhos de muitos, daí que hoje temos gente aparentemente normal surtando horrores, porque, como não conseguiu adaptar-se à mudança dos tempos, a antiga normalidade psicológica da época, ao perecer, se converteu numa insanidade mental, como um delicioso alimento que, quando perece depois de dias, se torna um perigoso veneno.
Essa prisão mental tem que ser rompida para que o Brasil, pelo menos, consiga andar, porque o nosso país já foi para o atoleiro elegendo Jair Bolsonaro, que é um reflexo desse "país mais ou menos" que as pessoas acreditam que "dá para viver", mas que um dia deixará de dar. Até porque essa visão pragmática de considerável parcela de brasileiros terá seus efeitos colaterais, e não adianta rezar a Chico Xavier, porque ele defendia que os sofredores têm que aguentar seus infortúnios calados e esperar pelo socorro (tardio) de Deus.
Infelizmente, o Brasil pagará o preço muito caro de querer manter um padrão de sociedade que cada vez mais perde o sentido. Sem que muitos saibam, ainda se insiste em se manter prisioneiro do general Ernesto Geisel, mesmo quando havia tempos mais democráticos.
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