(Autor: Professor Caviar)
É muito perigoso o mecanismo da propaganda arrivista, que, manipulando perfeitamente as conveniências, pode transformar um farsante num semi-deus - ou, ao menos, num "homem simples admirado na sua imperfeição" - , criando uma adoração viciada e de difícil reversão.
Muitos brasileiros não observam a armadilha das palavras, e, de repente, recebem um ídolo religioso pronto para uma adoração mais ou menos exagerada, sem perceber quais artimanhas foram feitas para promover esse ídolo.
Francisco Cândido Xavier foi um arrivista que se tornou um "semi-deus" ou alguém tido como "humanista, humilde e bom no limite de suas imperfeições", e em favor dele veio um sem-número de conveniências e truques, direta ou indiretamente bolados a partir da ambição de Antônio Wantuil de Freitas ou a partir de um método importado do inglês Malcolm Muggeridge. As pessoas são tapeadas, sem saber, e ainda se irritam quando alguém lhes traz este aviso contundente.
Chico Xavier foi um monstro que Humberto de Campos não imaginou. Ou será que imaginou? Será Chico o "filho" da Morte e da Dor, no qual a Dor tornou-se sua co-criadora, mas foi embora enquanto a Morte o acolheu nos braços, para ser, na velhice, o propagandista que glamourizou a tragédia humana, espetacularizou a morte, sobretudo prematura, e lançou como prêmio dessas tragédias repentinas um paraíso fictício para o qual foi previamente dado o nome de Nosso Lar?
Em todo caso, este conto de Humberto de Campos é de sua obra original, e o texto que dá título ao volume O Monstro e Outros Contos, livro que havia sido pronto para ser lançado no exato momento em que o autor maranhense fez as resenhas sobre Parnaso de Além-Túmulo, que teriam irritado o jovem "médium".
O estilo de Humberto, sem dúvida alguma, é bem distante do estilo conhecido nas "psicografias", nas quais a narrativa é mais pachorrenta e melancólica, sem a agilidade que marcou a obra original. Reproduzimos então o conto "O Monstro", e deixamos o leitor pensar se esse "monstro" não teria sido o "iluminado médium" que, traiçoeiramente, "encanta" milhões de almas na Terra.
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O Monstro
Por Humberto de Campos - O Monstro e Outros Contos, 1932
A Paulo César de Andrade
Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recém-criadas.
Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.
Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num voo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa. Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.
Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.
Para que mistério — disse, a voz surda, — para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:
— Para nós ambas, talvez...
— E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivando-lhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.
— Eu darei a água... — disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
— Eu darei o barro... — ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
— Traze mais água! — pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
— Mais água! — pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.
Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam os dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espírito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.
— Quem o criou fui eu! — dizia a Morte. — Fui eu quem contribuiu com o barro!
— Fui eu! — gritava a outra. — Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura à parte com que havia contribuído.
— Eu dei a água! — tornou a Dor.
— Eu dei o barro! — insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...
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