(Autor: Valério Neiva, via e-mail)
Acabamos de nos despedir da grande figura que foi o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, figura de profundo humanismo e coragem, que não baixou a cabeça aos generais da ditadura militar e, ainda durante o regime, fez um levantamento clandestino de informações sobre presos, torturados e mortos políticos, uma grande documentação que inspirou o livro Brasil Nunca Mais, organizado com o prebisteriano Jaime Wright - que perdeu um irmão, político de esquerda, para a fúria sanguinária dos torturadores - e o rabino Henry Sobel, livro lançado em 1985.
Falam tanto que o nosso Espiritismo à brasileira é "progressista", "moderno", "vanguardista", mas quanta diferença se observa num Chico Xavier dizendo que o "silêncio é a voz dos sábios" e pedindo para ninguém reclamar da vida, chegando ao cúmulo de implorar aos sofredores que não mostrassem sofrimento para os outros, ou seja, que fingissem serem felizes.
Enquanto a ditadura militar baixava o cacete e outras barbaridades, na sua pior fase, lá ia Chico Xavier na TV Tupi de São Paulo falar para orarmos para os militares porque eles estavam construindo o "reino de amor do Brasil futuro". Que consideração temos que dar a uma gente que chegava ao ponto de punir presos políticos com choques elétricos dados com os pés dos prisioneiros nus e colocados em um balde de água, para tais choques ficarem ainda mais chocantes?
Membro da corrente progressista da Igreja Católica, a Teologia da Libertação, Dom Paulo dava seu aval às comunidades eclesiais de base, cuja verdadeira caridade em fazer os cidadãos buscarem emancipação social e política, através da implantação do projeto educacional do mestre Paulo Freire, que era ateu, e esteve ao lado dos pobres não como um paternalista, mas como alguém que ajudasse os pobres a lutar pelos seus direitos, estimulando-os a expressarem sua própria voz e buscarem sua própria vez na luta pelos direitos humanos.
E Chico Xavier? No Pinga Fogo da TV Tupi, lá estava ele, tão tido como "progressista", esculhambar os operários e camponeses, gente humilde, com aquele preconceito anticomunista ferrenho, o mesmo que colocou no poder esse governo horroroso comandado por Michel Temer, que obrigará o povo a pagar caro só para sobreviver. E é assustador como teve esquerdista dando ouvidos a Chico Xavier, o homem que não gostava de ver gente reclamando, preferia que todos nós sofrêssemos em silêncio.
Dom Paulo assistia os manifestantes contra a ditadura. Comandou cerimônias em homenagem a Alexandre Vannucchi Leme, estudante assassinado pela repressão militar, e ao jornalista Vladimir Herzog, torturado na prisão do DOI-CODI. O cardeal ainda fez discursos duros contra o regime militar e manifestava claramente seu repúdio enérgico ao arbítrio dos militares. Apoiou o processo de redemocratização, mas não se compactuou com os políticos fisiológicos, mas ficou ao lado dos movimentos sociais.
A irmã de Dom Paulo, dona Zilda Arns, também praticava seu ativismo, atuando junto aos pobres não com a caridade paliativa em que os beneficiados só são "um detalhe". Não é a caridade onde o filantropo está acima dos necessitados, como se quisesse fazer propaganda com isso, mas uma caridade humanista, que ajuda mesmo. Zilda foi ajudar o povo do miserável Haiti, e, lamentavelmente, morreu enquanto fazia palestra, atingida por um desabamento durante o terremoto do começo de 2010.
Vemos em Dom Paulo um vigor renovador, um progressismo verdadeiro, realmente humanista, que estava acima dos limites católicos. Mais "católico", no sentido retrógrado do termo, era Chico Xavier, cuja "caridade" nunca foi devidamente esclarecida, sendo apenas ações paliativas em que o "filantropo" fazia o cuidado de estar acima dos beneficiados, criando uma estranha "superioridade" através da espetacularização da filantropia, algo que coloca o ato de ajudar o próximo em segundo ou terceiro plano.
O exemplo de Chico Xavier se perderá no tempo, como mistificador e deturpador da Doutrina Espírita e associado a valores ultraconservadores de um igrejismo velho e cheirando a mofo. Já Dom Paulo permanecerá na posteridade como um cardeal humanista que com prudência e serenidade, mas com bravura, agiu para denunciar os abusos da ditadura militar, servindo de exemplo para aqueles que hoje veem mais uma vez o Brasil mergulhado no obscurantismo político, que os "espíritas" preferem entender como um "processo de regeneração e libertação (sic)".
Comentários
Postar um comentário