(Autor: Professor Caviar)
A propósito, ninguém realmente parou para pensar. O "espiritismo" brasileiro se comporta como se fosse a "religião da grande mídia", que, para concorrer com veículos da mídia propriamente religiosa, como a Record, apresenta as caraterísticas ideais para enfrentar os "pastores eletrônicos".
O "espiritismo" pode se inserir sob uma roupagem laica, porque possui uma fachada de despretensão e independência. Possui um verniz de ciência e filosofia, e seu conteúdo pode primar, aparentemente, apelas por lições morais e atividades filantrópicas. Uma religião que pode muito bem se passar por uma "não religião".
O conteúdo ideológico do "espiritismo" brasileiro é bastante conservador. Suas raízes remetem ao roustanguismo, quando a FEB preferiu as deturpações de Jean-Baptiste Roustaing do que o pensamento pioneiro de Allan Kardec, "difícil de digerir". Para o bem e para o mal, o "espiritismo" que se gaba em se considerar "kardecista" tem que assumir a herança de Roustaing, como o governo de Michel Temer tem que assumir a herança do ex-deputado Eduardo Cunha.
Difícil admitir isso quando certas personalidades traiçoeiras soam incômodas demais. Daí o vexame que é a chamada "tendência dúbia" do "movimento espírita", corrente que prevaleceu durante 40 anos, a partir da crise aguda do roustanguismo no começo dos anos 70, depois que Luciano dos Anjos denunciou que Divaldo Pereira Franco plagiava Francisco Cândido Xavier, o que causou uma grande confusão na época.
Por uma mera questão política, pois naquela se acentuou a atuação centralizada da FEB pós-Wantuil - Antônio Wantuil de Freitas, ex-presidente, se aposentou, doente, em 1970, e morreu quatro anos depois - , com Francisco Thiesen e Luciano dos Anjos entre seus líderes (Thiesen presidia então a FEB), os descontentes da situação, sobretudo ligados a federações regionais (o poder concentrado da FEB, apesar da sede original no Rio de Janeiro e depois em Brasília, só admitia maior influência da FEESP, federação paulista), resolveram reagir.
Desta forma, os "espíritas" de federações regionais - lembremos que Chico Xavier e Divaldo Franco vieram, respectivamente, de Minas Gerais e Bahia - resolveram renegar Roustaing não pelo conteúdo de suas obras (apesar de aspectos incômodos como a reencarnação de homens como vermes e o corpo fluídico de Jesus Cristo, o igrejismo roustanguista de Os Quatro Evangelhos ficou praticamente intato), mas porque ele era o "partido" dos dirigentes da FEB.
Os descontentes resolveram fazer uma manobra bem esperta. Fingiram solidariedade aos críticos da deturpação da Doutrina Espírita, como Carlos Imbassahy, o pai, e José Herculano Pires, este sobrinho do contador caipira Cornélio Pires. A tendência dúbia veio com essa aproximação tendenciosa dos kardecianos autênticos, que fez os roustanguistas já um tanto enrustidos - Chico e Divaldo, apesar da afinidade de ideias com o advogado de Bordéus, tinham medo de assumir o roustanguismo - simular um suposto kardecismo "autêntico", em tese vinculado com as bases doutrinárias originais.
Só que a tendência dúbia, que simbolizou o auge de Chico Xavier e a ascensão de Divaldo Franco, foi apenas uma fachada. Beneficiada por traduções deturpadas da obra kardeciana, o que foi feito foi dissimular o antigo igrejismo roustanguista com uma falsa apreciação dos postulados espíritas originais, com direito a abordagens pseudo-científicas (mas não desprovidas de delírios esotéricos) e citações pedestres de personalidades do mundo intelectual e científico.
E, com isso, vemos também o apoio da grande mídia num contexto de crises sociais profundas. A crise da ditadura militar e a ascensão de pastores eletrônicos, como Edir Macedo e R. R. Soares, sinalizou a reação da Rede Globo e da mídia "independente" - eufemismo para a mídia patronal de interesses mesquinhos, profanos e eminentemente patronais, de manipular a opinião pública ao sabor do que interessa às elites - que teve que apelar para seus movimentos religiosos.
As pessoas imaginam que Globo, Band, Folha etc iriam reagir pondo católicos de batina para enfrentar Edir e R. R., certo? Errado! Embora dessem espaço para os "padres eletrônicos", esse setor da mídia tem que trabalhar com mitos "descompromissados", até para não despertar desconfiança dos "pastores eletrônicos" com sede de mídia.
E é aí que entrou o relançamento do mito de Chico Xavier, de uma forma menos escandalosa e "limpa" do que antes - sabe-se que, entre 1932 e 1970, o "médium" tornou-se um mito de forma acidentada e desorganizada, sofrendo graves escândalos e entrando até no noticiário policial - , beneficiado pela máquina midiática da Rede Globo que tomou como base um documentário inglês sobre Madre Teresa de Calcutá para relançar o "médium" como um "ícone da bondade e da caridade".
A antiga animosidade entre Globo e FEB havia sido superada (a TV Tupi, antiga parceira da FEB, estava falindo), e ambas passaram a se tornar parceiras desde então, quando usaram o documentário de Malcolm Muggeridge, Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God), para criar um mito de Chico Xavier com os mesmos apelos publicitários que se fez com Madre Teresa, criando uma "caridade" que mais fascina do que ajuda.
Isso criou paradigmas de "amor e bondade", "esperança" e "fraternidade", que compõem um marketing religioso, um repertório ideológico de "positividade", "lições de vida" e "amor ao próximo" que servem para o consumo e entretenimento das pessoas manipuladas pelo comercialismo midiático. É uma ideologia de "caridade" que não traz resultado concreto algum, mas cria relações ideológicas em que a "bondade" se reduz a uma qualidade subsidiária da fé e do misticismo.
Isso cria uma mitificação da "bondade" na qual se acobertam os defeitos dessa ideologia. Isso porque ela nada faz para combater injustiças sociais com profundidade, mas tão somente remendar as desigualdades apenas para evitar que ela vá "longe demais", causando escândalos que possam dar em denúncias contra as elites detentoras de poder e privilégios.
Os "espíritas" nunca afrontaram as elites e os poderosos. Quando vão fazer palestras para os ricos, se comportam de maneira complacente e até dizem, de forma hipócrita, que os ricos "também precisam da boa palavra, são aliás os que mais precisam" ou "os ricos também contribuem para a caridade". Nunca há uma atitude vista em ativistas bajulados pelos "espíritas", como Mahatma Gandhi, capaz de pedir boicote a produtos britânicos como protesto contra o domínio britânico na Índia.
A "caridade" e a "bondade", como qualidades subsidiárias à religião, passam a ter efeito inócuo. Elas apenas defendem a ajuda limitada, sem mexer nos privilégios das elites, e aí vemos o paralelo que tem de Madre Teresa de Calcutá viajando com magnatas corruptos e tiranos sanguinários, arrancando dinheiro não para a caridade, mas para os cofres dos sacerdotes do Vaticano, com Chico Xavier e Divaldo Franco falando para ricos e recebendo medalhas dos poderosos.
Os dois viraram astros da Rede Globo, porque ela viu neles os ídolos "descompromissados" para enfrentar Edir e R. R. Soares, sem precisar lançar um ídolo de batina com a Bíblia católica debaixo do braço. Basta apenas, para enfrentar o mago Moisés rasgando o Mar Vermelho como se fosse dividir um pão em dois, "médiuns" falastrões ou escrevinhadores de cartas, mandando "lições de fraternidade" com "mensagens de amor".
Os neopentecostais eletrônicos nem desconfiam, pois tudo parece, na Globo, Band e similares, como se a religiosidade fosse não um movimento institucional, mas um sentimento arraigado na população. Com o "espiritismo", fica a impressão, falsa mas verossímil, de que sentimentos de religiosidade fluem "naturalmente", sem representar, abertamente, uma estrutura institucional que rivalizasse com a Igreja Universal do Reino de Deus e similares.
E a Globo é especialista em manipular o inconsciente coletivo das pessoas, a ponto de lançar hábitos, gírias, vestuários e condutas sem que seus espectadores percebam tamanha manipulação. E muitos acreditaram que Chico Xavier é o "homem mais bondoso do país", sem perceber que tamanha falácia foi divulgada aos quatro ventos pela mesma Rede Globo que pediu votos a Fernando Collor e lutou pelo Fora Dilma.
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