(Autor: Professor Caviar)
Numa sociedade tomada de valores ultraconservadores como a brasileira, é preciso tomar cautela antes de tentar legitimar a canonização de Madre Teresa de Calcutá, realizada anteontem no Vaticano.
Afinal, o que está em jogo é sempre um processo de marketing religioso, que alimenta as paixões deslumbradas dos que acreditam na concessão terrena das "superioridades espirituais", feita mediante dogmas e estereótipos surgidos desde os tempos do Catolicismo medieval.
Numa época em que o capitalismo voraz mercantiliza tudo, até as relações sociais - corrompidas sobretudo pelo recreio do WhatsApp e de uma Internet que, em vez de aproximar pessoas distantes, distancia pessoas próximas - , a "bondade" é reduzida a um subproduto da fé religiosa, dentro de medidas paliativas que "ajudam os necessitados" sem comprometer as estruturas desiguais da sociedade injusta em que vivemos.
A "caridade" passa a ser vista num processo quase automático e simplório de uma figura religiosa dando sopas ou oferecendo abrigo e roupas a alguém. Isso lembra muito mais a imagem maternal de nossa infância, ou a pregação paternal dos "bons conselhos". São aspectos que vêm de visões patriarcalistas da família, as próprias ideias de "bondade" e "caridade" se submetem a essa linha ultraconservadora que ilude muita gente.
Madre Teresa de Calcutá escondeu nessa imagem de "filantropa" e suposta ativista social - trabalhada como marketing religioso pelo jornalista católico Malcolm Muggeridge, no documentário Algo Bonito para Deus (Something Beautiful for God) - os aspectos sombrios de sua "caridade".
Por trás dessa imagem "bondosa", descobriu-se que a freira albanesa que atuava num bairro pobre de Calcutá, Índia, mantinha suas casas de "caridade" em péssimas condições, valendo a péssima reputação de "depósito de gente" e revelando o lado hipócrita das "casas humildes" de "assistência aos necessitados".
Isso tudo é um teatro de "humildade", mas revela muita crueldade. Doentes eram expostos uns ao lado dos outros, sob o sério risco de contágio de doenças graves, como a hanseníase. Eles só eram remediados com paracetamol e aspirina. Eram mal alimentados. Recebiam injeção por seringas reutilizadas e só lavadas com água de torneira. As casas eram mantidas em sérias condições de falta de higiene.
Diante disso, parece ser cruel comparar essa "caridade" com o holocausto nazista. Mas quem observa a realidade é obrigado a isso. Só que, nessa onda retrô de volta ao ultraconservadorismo, as pessoas deixam para lá e nem questionam os supostos milagres atribuídos a uma freira, estórias muito mal contadas que garantiram o fácil acesso de Madre Teresa à "santidade".
Sabe-se que os dois "milagres" soam como estórias da Carochinha, atribuindo curas a uma medalhinha com imagem da "santa". Um foi em 2002, quando a indiana Monica Besra foi curada de câncer. Outra, em 2008, com o engenheiro brasileiro Marcílio Haddad Andrino foi curado de um suposto tumor cerebral em "condições devastadoras".
Como no exterior se questiona o mito de Madre Teresa, a partir da iniciativa corajosa de Christopher Hitchens, e no Brasil ainda reina a complacência e às ilusões do status quo, a primeira farsa pôde ser desmascarada quando até o marido de Monica admite que ela não se curou por milagre, mas por ter seguido rigorosamente todos os procedimentos de tratamento contra o tumor.
Já o caso do engenheiro tem a cumplicidade de cerca de quinze pessoas, e até a própria esposa, por ter participado da farsa - recorrendo a um padre e arrumando a medalhinha - , é a que mais apoia essa visão oficial dessa estória mal contada, na qual uma provável dor de cabeça se transformou, do nada, em um "tumor devastador e mortal" que teria sido "curado com orações e fé".
E aí surge aquela ideia medieval: "excesso de ciência não presta". Segundo essa ideia, não devemos avançar demais no "excesso de raciocínio" e manter intocável o terreno da fé e do misticismo. Essa ideia da Igreja Católica é compartilhada tanto pelos evangélicos que defendem a Escola Sem Partido quanto pelos "espíritas" que reprovam o tal "tóxico do intelectualismo" dito por Emmanuel.
Eles tentam até desmentir dizendo que "não reprovam" o pensamento questionador, alegando que apenas pedem para "tomarmos cuidado com ele" e "não perguntar demais". E o que dizia Emmanuel a respeito disso? Ele sempre dizia "não questiones", "confie e ore", "aceite e acredite", "não contestai" etc etc. Isso é medieval, é uma abordagem que, com toda a dissimulação de falsa valorização da Ciência, revela, em verdade, a sua condenação severa e cruel.
E voltamos à Madre Teresa de Calcutá com suas ideias retrógradas. Tinha que ser canonizada por causa de um "milagre" a ela atribuído anos antes, mas consagrado nos últimos dias, com o Brasil (des)governado por Michel Temer.
Isso tem tudo a ver com a agenda retrógrada de Michel Temer. Madre Teresa poderia ser uma "ativista" símbolo dessa época. Afinal, para um projeto político que quer obrigar as pessoas a trabalhar mais, ganhar menos e se aposentar mais tarde, talvez até depois de morrer - o duro é estar no além-túmulo e receber a notícia tardia de que se aposentou na Terra - , além do corte de investimentos na área social, faz sentido transformar uma megera dessas em "santa".
O Brasil ainda trata o farsante Chico Xavier como "unanimidade". E, no último fim de semana, um internauta foi fazer upload no YouTube - reduto dos chiquistas desesperados - com Jô Soares entrevistando Divaldo Franco, o "maior filantropo do Brasil" que não consegue ajudar um por cento da população brasileira e só ajuda muito, muito menos do que isso.
Claro, o deslumbramento religioso vale mais do que a quantidade de beneficiados ou a qualidade da caridade. Para um Brasil cujo presidente só tem o respaldo de 428 votos (367 da Câmara dos Deputados e 61 do Senado Federal), faz sentido glorificar filantropos que só dão sopinha e roupa mofada para os pobres e ensinam bobagens místico-religiosas para instruir as pessoas.
Portanto, pode ter sido um equívoco santificar Madre Teresa pelo descaso que ela fez sob o véu do prestígio religioso. Mas isso tudo, se apoiando num suposto milagre ocorrido no Brasil, tem tudo a ver com os retrocessos que Michel Temer sinaliza para o país. A maior frustração de muitos brasileiros é ver que o país não passou por uma Idade Média.
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