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Chico Xavier, um hipócrita

(Autor: Senhor dos Anéis)

Se o brasileiro manifesta alguma consideração, a mínima que for, à pessoa de Francisco Cândido Xavier, que faleceu há exatos 18 anos, é bom parar um pouco para ver em que erro grave caiu. Não basta fingir que é só uma "admiração saudável a um homem imperfeito, mas bom", porque isso é desculpa furada para esconder o fanatismo.

O apego a Chico Xavier é uma das doenças mais preocupantes do Brasil. Um apego que agora está mais envergonhado e enrustido, porque seus seguidores agora têm medo de serem vistos como beatos ou fanáticos, e que criou uma atitude surreal: pessoas que um dia consideravam Chico Xavier um "quase deus", agora retiram do seu pedestal e o definem agora como "imperfeito" e "endividado".

O grande problema é que Chico Xavier é o maior símbolo do que a hipocrisia humana, a falsidade, pode alcançar num país de gente em maioria desinformada e emocionalmente frágil. Ele foi um arrivista que a memória curta escondeu debaixo do tapete, enquanto uma narrativa enxuta o definia como um pretenso filantropo, com uma vida de "contos de fadas".

O Brasil, país muito novo, nunca esteve preparado e nem ainda está para a paranormalidade. Se nos EUA e na Europa a paranormalidade era ainda controverso, e os estadunidenses haviam passado por fenômenos fraudulentos - as mercenárias Irmãs Fox, o ganancioso Phineas Taylor Barnum (P. T. Barnum, da frase "surge um idiota por minuto") e o fraudador William H. Mumler - que desmoralizaram a atividade paranormal, imagine no Brasil.

Aqui as pessoas mal conseguiram ter consciência de sua identidade cultural. A Semana de Arte Moderna, que chamou a atenção para isso, havia ocorrido dez anos antes de 1932, data em que foi publicado o livro Parnaso de Além-Túmulo, que deveria ser alvo de mais rigorosa desconfiança. Allan Kardec, com certeza absoluta, reprovaria o livro.

Se o Brasil mal começava a ter consciência de si mesmo, imagine a falta de preparo em receber mensagens de mortos. Além do mais, o ditado "é bom demais para ser verdade" vêm à tona, porque é estranho que surgisse, assim de repente, um livro em que poetas e prosistas de diferentes procedências, alguns deles de Portugal, decidam se reunir em torno de um funcionário público caipira para lançar, juntos, uma obra literária.

Seria bom demais para ser verdade porque, embora sobrem alegações de caráter emocional - sobretudo pela suposta luminosidade de Chico Xavier, então com 22 anos - , não há chance alguma de sustentação lógica, porque, neste sentido, os argumentos se tornam frágeis, e as abordagens, bastante fantasiosas.

Também devemos nos lembrar que Parnaso de Além-Túmulo é uma obra medíocre. Seu título remete ao Parnasianismo, apesar de boa parte dos supostos autores sejam creditados como os poetas do Romantismo. O Parnasianismo já havia sido ultrapassado há pelo menos dez anos, em relação a 1932. Mesmo o neo-parnasiano Humberto de Campos, depois usurpado por Chico Xavier, tinha feições modernistas em sua obra original.

Por sua vez, as obras presentes em Parnaso de Além-Túmulo estão sempre abaixo da qualidade que se esperava de escritores brasileiros. Nomes como Castro Alves, Casimiro de Abreu e Augusto dos Anjos aparecem como paródias do que haviam sido. Olavo Bilac e Auta de Souza "desaparecem" em estilo e "escrevem" igualzinho Chico Xavier. O idiota da Internet acharia maravilhoso, perguntando: "Quem é que não quer ter o mesmo estilo do maravilhoso Chico Xavier?".

Este livro, confirmadamente, representa profundas fraudes literárias. E o pior é que essa constatação não partiu de furiosos opositores, mas de seguidores e amigos como Suely Caldas Schubert e simpatizantes "isentos" como Ana Lorym Soares. 

Ambas difundiram cartas de Chico Xavier ao presidente da Federação "Espírita" Brasileira, Antônio Wantuil de Freitas, revelando que as obras "psicográficas" não só eram modificadas pelos dirigentes da federação como o próprio "médium" não apenas consentia com a tarefa como também se oferecia para colaborar com as mesmas.

O que é mais grave é que até mesmo parentes de dirigentes da FEB e redatores da instituição participavam das modificações editoriais das obras "mediúnicas". Ana Lorym chegou a colher detalhes, de uma ex-funcionária da FEB, sobre tamanhas ações que a historiadora desconhece serem fraudulentas. A autora divulgou sua tese como uma caixa-bomba adquirida sem ser aberta nem se ter ideia do que contém a embalagem.

Ao longo dos anos, Chico Xavier usou diversos nomes em sua suposta "psicografia". Desde o de sua mãe, Maria João de Deus, até Humberto de Campos - ação com indícios de revanche, depois que o autor maranhense, em vida, desaprovou Parnaso de Além-Túmulo - , a iniciativa apresentou aspectos bastante duvidosos, que escapavam de detalhes pessoais dos autores alegados.

Isso ia desde a qualidade textual, medíocre e sem nuances, que se reflete sobretudo sob o nome de Humberto, no qual "desaparecia" a narrativa ágil do autor maranhense, assim como "desapareceu" a musicalidade poética de Olavo Bilac, substituída por uma poesia maçante e cansativa de ser lida, até, no caso de mensagens de "pessoas comuns", difundidas pela "indústria de cartas mediúnicas" dos anos 1970 e 1980, feitas com base em leitura fria e consultas de material escrito.

A leitura fria é uma técnica de obtenção de informações a partir das reações psicológicas da pessoa entrevistada, além de outros dados sutis. Nas "casas espíritas", sobretudo aquelas "administradas" por Chico Xavier, seus colaboradores entrevistam um número diversificado de parentes, consultam de material de imprensa até escritos pessoais deixados pelos mortos, e montam um sofisticado repertório de informações para as "psicografias", de forma a tentar desnortear até os peritos.

Daí que vemos teses acadêmicas que falam em "aspectos pessoais inacessíveis" das supostas psicografias dos "entes queridos". Uma informação que a professora tem de um morto que a mãe deste não sabe, por exemplo, é considerada "inacessível". Se o vendedor da padaria onde o morto comprava pão diz outra informação, é "mais inacessível ainda", assim como informações trazidas pelos amigos de faculdade, de futebol, pela antiga primeira namorada etc.

UM "MÉDIUM" REACIONÁRIO

Não bastasse toda essa literatura fake, que fez de Chico Xavier um pioneiro dos fakes - dado que deveria ser considerado num tempo em que se combate fake news - , temos também o fato de que, por sua formação social ultraconservadora (não fosse a alegada "paranormalidade", Chico Xavier seria um católico tão ou mais ortodoxo e medieval do que aqueles que o expurgaram), o "bondoso médium" tinha que creditar aos mortos boa parte de as opiniões pessoais dele.

Isso dava a falsa impressão de que as opiniões reacionárias de Chico Xavier eram "universais", "atemporais" e "acima dos tempos e das sociedades". O caso de jogar para Humberto de Campos a acusação de que as humildes vítimas do incêndio em um circo em Niterói, em 1961, teriam sido "romanos sanguinários", foi um exemplo, para livrar Chico Xavier de qualquer culpa pelo perverso juízo de valor.

As ideias reacionárias de Chico Xavier também davam ao incauto uma sensação de "efeito Forer", que é a falta de discernimento pelas avessas, ou seja, a ingenuidade de enxergar diferença onde ela não existe. Através do seu prestígio, Chico Xavier podia ser um radical "médium de direita" (mais do que Divaldo Franco) e, mesmo assim, seu mito transitar por setores das esquerdas brasileiras.

Assim, ideias sobre servidão humana que, ditas por Jair Bolsonaro, Luciano Hang ou Paulo Guedes, soariam "vergonhosamente reacionárias", em Chico Xavier elas seriam, equivocadamente, vistas como "progressistas", porque essa falsa impressão se guia não pelo conteúdo de ideias nem de linguagem, mas do prestígio de quem diz, que cria, no público, uma sensação de "dois pesos, duas medidas".

Poucos conseguem perceber que as ideias de Chico Xavier são de um profundo reacionarismo, com efeito rigorosamente doutrinário, pois está presente não só em seus depoimentos, mas também em seus livros, e várias delas anteciparam pautas consagradas pelo golpe político de 2016.

Há, nas ideias de Chico Xavier, conceitos de trabalho servil que se encaixam perfeitamente na "reforma trabalhista", de tal forma que há quem diga que a Lei 13.467 de 2017 deveria ser, em parte, creditada ao "médium", que claramente defendia aspectos desse retrocesso no âmbito do trabalho.

Recomendações de que se continuasse trabalhando mesmo quando a tarefa é exaustiva, de difícil execução, horário prolongado, com patrões abusivos, colegas traiçoeiros e remuneração medíocre, imaginário profissional latente no ideário xavieriano, remetem aos padrões trabalhistas da direita moralista brasileira, que aos oprimidos defendem que suportem os piores sacrifícios, dentro de um padrão de meritocracia que, mesmo em palavras "dóceis", está presente em Chico Xavier.

É preciso avisar que é inútil botar na conta de Emmanuel as ideias reacionárias de Chico Xavier, porque, na hipótese das "psicografias" que levam o nome do jesuíta forem autênticas - pessoalmente, eu suponho que Emmanuel teria sido o único espírito que teria ditado obras para o "médium" - , é do conhecimento dos chiquistas que o beato de Pedro Leopoldo e Uberaba concordava com tudo o que o "mentor" jesuíta lhe comentava, acreditava e determinava.

IMPOSSÍVEL REABILITAR O ESPIRITISMO COM CHICO XAVIER

Outra coisa a chamar a atenção é a impossibilidade de recuperar as bases doutrinárias dando consideração a Chico Xavier, porque ele é um sujeito deplorável e desprezível para uma tarefa de tamanha responsabilidade.

Isso porque há inúmeras demonstrações de que Chico Xavier contraria severamente e de forma bastante preocupante os ensinamentos espíritas, e isso pode ser constatado consultando a obra O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec, na tradução, fiel ao texto francês, de José Herculano Pires.

A literatura fake de Chico Xavier tem o agravante da falsidade ideológica manifesta em falhas de aspectos pessoais, e pelo precedente aberto para usar os nomes dos mortos em mensagens apócrifas, de maneira bastante impune, como se fosse possível até manipular, postumamente, o pensamento daquele que já morreu. 

Fica muito fácil, por exemplo, forjar uma mensagem de um suposto Ricardo Boechat , "arrependido" do seu ateísmo, supostamente "esclarecido" numa "colônia espiritual" da existência de Deus. Ou de uma suposta Marisa Letícia Lula da Silva pedindo para ninguém mais votar no Partido dos Trabalhadores e esquecer Lula, que "está velho", para "evitar novos dissabores".

Para piorar, o uso desses nomes contraria Allan Kardec, que recomendava maior cautela com as mensagens que exibem nomes de pessoas famosas. O "desfile" de grandes nomes é, muitas vezes, um artifício para que se promova sensacionalismo, impressione e intimide as pessoas emocionalmente frágeis, que acabam sendo dominadas pelo suposto médium que veicula tais mensagens.

Chico Xavier usou "nomes ilustres" para promover mistificação. Determinou datas fixas para acontecimentos futuros. Sem fundamentação, falava em extra-terrestres "salvando a Terra", em um exemplo gravíssimo de mistificação. Além disso, mesmo em livros curtos, Chico Xavier se servia de linguagem empolada para ludibriar os leitores.

E nem mesmo sua "caridade" deve ser apoiada, porque ela sempre esteve dentro dos limites medíocres e fajutos que hoje "consagram" Luciano Huck. Essa "caridade" nunca trouxe resultados definidos, muito pelo contrário, tinham mais o cuidado de deixar os pobres aliviados sem que se mexesse nas estruturas profundas da pobreza nem nos padrões de desigualdades sociais existentes.

Chico Xavier, que endeusava o patronato, que apoiava o coronelismo no Triângulo Mineiro, supostamente como "irmãos", foi um hipócrita moral. Pretendia forjar a "confraternização" dos opressores e dos oprimidos, desde que os opressores sejam perdoados por seus abusos e os oprimidos conformados com sua desgraça. Até para superar a desgraça humana Chico Xavier defendia que as pessoas se sacrificassem mais ainda, dentro dos padrões conservadores da meritocracia.

Se colocarmos em comparação a obra kardeciana original e a de Chico Xavier, haverá disparidades chocantes. São distorções gravíssimas das quais não se pode usar a desculpa das "tradições religiosas populares brasileiras" para se deixar passar. Chico Xavier foi um inimigo interno do Espiritismo, pelas tarefas que fez contra a Doutrina Espírita e visando adaptar o roustanguismo (que o "médium" praticou exemplarmente, apesar do medo de assumi-lo) à realidade brasileira.

Isso se confirma com ideias, com o conteúdo textual, com as palavras mais óbvias. Das fraudes literárias ao reacionarismo, passando pelos desvios doutrinários. Só mesmo um país desinformado e emocionalmente vulnerável, para ignorar tudo isso em nome da adoração de um hipócrita que chegou a ser considerado "unanimidade" e cuja dominação alcançou até ateus e esquerdistas, que ao menos deveriam ser os últimos a darem algum apreço a Chico Xavier.

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