(Autor: Professor Caviar)
O deslumbrado cidadão, seja ele um "espírita" ou um "simpatizante não-sectário" do "espiritismo" brasileiro, se ilude com a embalagem bonita que a religião apresenta ao público, tão bonita que intimida até trabalhos de investigação acadêmica, jurídica e jornalística tamanho o cenário de flores, céus azuis, passarinhos voando e crianças sorrindo que a religião mostra em sua propaganda.
Sem ter o cuidado de ler os livros repletos de ideias conservadoras trazidos principalmente por Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, muita gente boa se engana achando que eles apresentam ideias avançadas e de conteúdo bastante progressista, só porque viram eles abraçando criancinhas pobres e negras e elas pareciam sorridentes e felizes (por sabe-se lá com que manipulação mental a que foram sujeitas).
Muita gente aloprada, mas que posa de "bastante esclarecida", surfa na Internet com seus blogs e mensagens "imperfeitas, é verdade, mas esforçadas no saber" (como diz a sua vã demagogia), e imagina que, quando Chico Xavier prega que os trabalhadores exaustivos, quando se excede o fim da jornada de trabalho, continuem trabalhando e orando, e esperar que, "inspirado nos desígnios de Deus", o patrão lhe determine a hora de repouso.
A apologia ao trabalho exaustivo tenta ser desmentida pelos pregadores "espíritas". Eles tentam creditar a servidão e o trabalho exaustivo como "metáforas", e tentam atribuir "servidão" e "serviço" como "sinônimos". Mas suas ideias são muito claras na defesa desse valor retrógrado, que envolve tanto o trabalho submisso, principalmente a um patrão abusivo ou corrupto, a execução de tarefas difíceis, em carga horária extenuante e sob baixa ou até nenhuma remuneração. Tudo calcado na Teologia do Sofrimento, que aparece explícita nas ideias do "espiritismo à brasileira", embora ninguém tenha coragem de assumir essa corrente radical do Catolicismo da Idade Média.
O mais irônico é que, quando o Espiritismo foi introduzido no Brasil, o médico Adolfo Bezerra de Menezes se declarava "abolicionista". Ele escreveu um livro correto sobre Abolicionismo, A Escravidão no Brasil e as Medidas que Convêm Tomar para Extingui-la Sem Dano para a Nação, de 1869, mas não foi um expressivo militante do Abolicionismo. Outros parlamentares e ativistas atuaram de maneira mais expressiva que o dirigente "espírita", que se manifestou tardiamente por uma causa que já era antiga quando veio a Lei Áurea, em 1888.
A ironia reside pelo fato de que, com o tempo, e através do moralismo ultraconservador de Chico Xavier, o "espiritismo" brasileiro passou a defender um trabalho análogo ao da escravidão. Sob a desculpa de "seguir os ensinamentos do Cristo", passou-se a defender a servidão, o trabalho exaustivo, a perda salarial (sob o pretexto da abnegação) e outros "sacrifícios necessários" para a "evolução do espírito".
Isso se encontra em muitas obras e depoimentos de Chico Xavier. Várias vezes ele apelava aos sofredores que se queixavam da vida dura: "Por que reclamas do aumento de horas trabalhadas se há pessoas que não têm um minuto de trabalho em suas vidas?". Sério. E tem gente que acha o "médium" o primor do pensamento progressista, pasmem!
Poucos conseguem admitir, mas Chico Xavier tinha a ênfase no "sacrifício extremo", com base na Teologia do Sofrimento que ele professava, com gosto e muita convicção. As interpretações que tentam creditar Chico Xavier como um "esquerdista e progressista" são equivocadas, sempre se baseiam em ideias soltas e em interpretações falaciosas, falhas em argumentação apesar de seu caráter fortemente persuasivo, pois se sustentam sempre nos apelos fáceis do pensamento desejoso e em pretextos superficiais.
Se ele estivesse vivo, Chico Xavier teria apoiado, sem hesitação, a candidatura de Jair Bolsonaro em 2018, alegando que "os brasileiros precisam encarar certos sacrifícios". O horror do "médium" mineiro ao PT é uma realidade que os brasileiros de esquerda nunca deveriam desprezar ou subestimar.
Pois a tese da "servidão" - sob o princípio de que "é sempre necessário servir, sem desejar algo em troca e sem ansiar o descanso" - contraria frontalmente os ensinamentos espíritas originais, conforme se observa, claramente, a passagem de O Livro dos Espíritos, obra de Allan Kardec, na qual se fala da questão do repouso e do limite do trabalho.
Para Chico Xavier, pouco importa a pessoa trabalhar demais, ganhar pouco, servir a gente abusiva, corrupta e até violenta e à pessoa somente cabe o descanso quando o cansaço não permite controlar as forças físicas (como, por exemplo, manter os olhos abertos) - daí as narrativas de "cansaço" que se atribui a Chico no diálogo com Emmanuel e, também, no de Divaldo Franco com o obsessor Máscara de Ferro, com sua identidade "trans" de "Joana de Angelis" - , embora se permitisse a continuidade do trabalho quando a exaustão já começa a oprimir o corpo físico. Em contrapartida, Kardec rejeitava essa opressão, e nunca falou em "espírito de sacrifício" como desculpa para defender o trabalho extenuante.
A passagem está no Livro III, Capítulo 03, Lei do Trabalho, itens 682 a 685, mais o comentário do próprio Codificador:
II – Limite do Trabalho – Repouso
682. Sendo o repouso uma necessidade após o trabalho, não é uma lei da natureza?
— Sem duvida o repouso serve para reparar as forças do corpo. E também necessário para deixar um pouco mais de liberdade à inteligência, que deve elevar-se acima da matéria.
683. Qual é o limite do trabalho?
— O limite das forças; não obstante, Deus dá liberdade ao homem.
684. Que pensar dos que abusam da autoridade para impor aos seus inferiores um excesso de trabalho?
— É uma das piores ações. Todo homem que tem o poder de dirigir é responsável pelo excesso de trabalho que impõe aos seus inferiores, porque transgride a lei de Deus. (Ver item 273.)
685. O homem tem direito ao repouso na sua velhice?
— Sim, pois não está obrigado a nada, senão na proporção de suas forças.
685 – a) Mas o que fará o velho que precisa trabalhar para viver e não pode?
— O forte deve trabalhar para o fraco: na falta da família, a sociedade deve ampará-lo: é a lei da caridade.
Comentário de Kardec: Não basta dizer ao homem que ele deve trabalhar, é necessário também que o que vive do seu trabalho encontre ocupação, e isso nem sempre acontece. Quando a falta de trabalho se generaliza, toma as proporções de um flagelo, como a escassez. A ciência econômica procura o remédio no equilíbrio entre a produção e o consumo, mas esse equilíbrio, supondo-se que seja possível, sofrerá sempre intermitências e durante essas fases o trabalhador tem necessidade de viver. Há um elemento que não se ponderou bastante, e sem o qual a ciência econômica não passa de teoria: a educação. Não a educação intelectual, mas a moral, e nem ainda a educação moral pelos livros, mas a que consiste na arte de formar caracteres, aquela que cria os hábitos, porque educação é conjunto de hábitos adquiridos.
Quando se pensa na massa de indivíduos diariamente lançados na corrente da população, sem princípios, sem freios, entregues aos próprios instintos, deve-se admirar das conseqüências desastrosas desse fato? Quando essa arte for conhecida, compreendida e praticada, o homem seguirá no mundo os hábitos de ordem e previdência para si mesmo e para os seus, de respeito pelo que é respeitável, hábitos que lhe permitirão atravessar de maneira menos penosa os maus dias inevitáveis. A desordem e a imprevidência são duas chagas que somente uma educação bem compreendida pode curar. Nisso está o ponto de partida, o elemento real do bem- estar, a garantia da segurança de todos.
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