(Autor: Senhor dos Anéis)
O Brasil vive um clima de fim da infância. Como em todo fim da infância, há um desespero total em não abandonar a infância e suas impressões agradáveis, que precisam ser repetidas como farsa.
Nesse clima, as pessoas reagem às mudanças no tempo com rejeição, e na sua insegurança elas se apegam a impressões que sempre marcaram seus melhores momentos. Ou seja, quando a infância termina, é aí que a pessoa mais se revolta contra isso, negando as mudanças e usando o saudosismo como um refúgio para a insegurança do futuro.
No nosso país, temos, por exemplo, suspeitas de velhos feminicidas morrendo, "malvados favoritos" que, com 80 e tantos anos, embora há mais tempo "pedindo para sair", fumando mais do que chaminé de fábrica antiga no auge da atividade, e só de pensar nessa hipótese muita gente, mesmo as feministas, ficam de mimimi, porque ninguém quer ver um machista fraco, por temer que isso pode trazer vitimismo para eles e, além disso, também faltará gente para a conversão religiosa que ajudaria a lotar igrejas.
Isso é vergonhoso, se percebermos que a criançada está aceitando melhor a ideia da morte, vendo outras crianças falecendo de leucemia e nem por isso correndo para os quartos chorarem. E também temos a criançada aceitando a revelação que Papai Noel não existe, assim como também não existe Coelhinho da Páscoa. Mas aí o mundo adulto parte para mais uma vergonha alheia.
Trata-se do "médium" Francisco Cândido Xavier, mais blindado do que toda a nata do tucanato (PSDB) junta, pioneiro na literatura fake - que sempre aponta algum problema relacionado ao suposto autor espiritual e não raro o estilo do "médium" salta nas mensagens "psicográficas" - , filantropo fajuto à maneira de Luciano Huck e reacionário radical.
Até agora mesmo as esquerdas ficam coçando a cabeça diante do reacionarismo explícito de Chico Xavier, seu passado arrivista e uma coleção de aspectos que o fazem comparável a Jair Bolsonaro. Acham que é obra de algum "obsessor" e ficam cheios de dedos fazendo argumentação confusa para tentar negar o óbvio, porque o direitismo de Chico Xavier foi bem mais radical e evidente do que o de Carlos Vereza, por exemplo.
É a realidade, estúpido! O pessoal vê Chico Xavier defendendo a ditadura militar, o AI-5, recebendo condecoração da Escola Superior de Guerra, pedindo para orarmos pelos militares, que as Forças Armadas (incluem o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra nesta parada) estavam construindo um "reino de amor" que seria o Brasil no futuro e ninguém dá a mínima?
Ou alguém acha que a Escola Superior de Guerra condecorou e ofereceu espaços para Chico Xavier dar sua palestra porque achava transada a peruca que ele usava? Negar que Chico Xavier colaborou com a ditadura militar - paciência, religiosos também podem apoiar e colaborar com tiranias, que oferecem "matéria prima" para as igrejas "fabricarem caridade", que são os oprimidos - é uma incoerência que traz à tona problemas muito sérios, em duas questões:
1) Se Chico Xavier é considerado "humanista", por que ele dava apreço aos opressores? Um humanista de verdade repudia opressores, e prefere ser sacrificado por isso do que salvar a pele exaltando tiranias. Além disso, como Chico Xavier, tido como "símbolo da paz e da fraternidade", iria aceitar fazer uma palestra e ser homenageado por uma instituição com "guerra" no nome?
2) Se a ditadura militar vivia um radicalismo violento, que fez com que a repressão se tornasse ainda mais rigorosa e cruel, que sentido tem a Escola Superior de Guerra, num período em que pais e mães de família eram assassinados por discordarem do regime ditatorial e seus abusos, dar uma pausa e viver arroubos de suposto humanismo acolhendo um "símbolo do bem"? A hipótese é emocionalmente confortadora, mas não tem pé nem cabeça.
Chico Xavier foi arrivista como Jair Bolsonaro. As "psicografias literárias" de um e o "plano de atentado terrorista" de outro causaram escândalos que revoltaram, respectivamente, especialistas literários e oficiais militares, mas em ambos os casos a Justiça deu punição branda aos culpados e abriram caminho para sua ascensão vertiginosa.
As frases emblemáticas de um e de outro até se equivalem: "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" e "Brasil, Acima de Tudo, Deus, Acima de Todos". E se Chico Xavier, supostamente, é tido com a "antítese do ódio", isso não é compartilhado pelos seus seguidores, que são capaz de vinganças e rancores próprios dos bolsonaristas, e até pior que estes. Vide o que os "misericordiosos espíritas" teriam feito com Amauri Xavier, que morreu de forma muito, muito suspeita.
Chico Xavier se projetou com literatura fake, que incluiu um suposto Olavo Bilac que parece ter esquecido seu estilo pessoal peculiar no caixão. Auta de Souza e Humberto de Campos também estão associados a obras que dão a impressão de que os mortos deixaram seus estilos próprios no túmulo e passaram a ter o estilo de Chico Xavier, coisa que deixaria o idiota da Internet bastante maravilhado: "Quem é que não quer ter o estilo iluminado do nosso Chico Xavier", diria esse "terraplanista do bem".
E as ideias doutrinárias de Chico Xavier? As bandeiras reacionárias estão todas lá: reforma trabalhista (como perdas salariais, aumento da carga horária, servidão ao patronato abusivo), "cura gay" ("os gays merecem absoluto respeito, mas precisam rever suas escolhas e adaptar às condições sexuais biológicas determinadas por Deus) e Escola Sem Partido.
Sem falar que o "bondoso médium" era radicalmente contra o aborto. Se uma menina com 10 anos for estuprada e engravida, os "ensinamentos" de Chico Xavier recomendariam manter a gravidez, pela seguinte desculpa: a de "permitir a existência de um novo espírito a enfrentar suas provas". Mas se a menina morre cedo, vem outra desculpa, a de que "a jovem sofredora, muito criança ainda, encerrou (sic) sua missão espiritual e deixa como legado uma nova alma que seguirá adiante na existência coordenada por Deus".
Ainda há muitas pessoas pulando, saltitando e gritando feito crianças malcriadas, dizendo que Chico Xavier nada tem a ver com Jair Bolsonaro, que o "médium" não apoiaria o ex-capitão em 2018, mas apoiaria Fernando Haddad porque este é um professor, em alegações sem pé nem cabeça, apesar de emocionalmente mais confortáveis. Esquecem os chiquistas que o próprio Chico Xavier era um anti-petista dos mais inflexíveis, e seria mais radical se vivesse até hoje.
Para as esquerdas, foi fácil se decepcionar por gente mais verossímil no plano das forças progressistas. Tipo Fernando Gabeira. Mas até hoje coçam a cabeça na tentativa de negar o que salta aos olhos: que Chico Xavier sempre foi um reacionário convicto, nos níveis de um Jair Bolsonaro, guardadas as diferenças de contexto e de pequenos detalhes (como a questão do porte de armas, por exemplo).
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