Não há como escapar. O imaginário que produziu um ídolo religioso como Francisco Cândido Xavier é o mesmíssimo que produz, hoje, o "fenômeno" Jair Bolsonaro, considerado o maior favorito das pesquisas numa simulação de campanha presidencial sem Lula. Vendo que as pressões contra o candidato petista são muito grandes, as chances de Bolsonaro ser eleito, ao menos no segundo turno, são grandes, apesar do candidato do PSL contar mais com a ajuda de algoritmos e pesquisas eleitorais compradas para anabolizar sua aparente e estranha popularidade.
Descontando as diferenças particulares, Chico Xavier e Jair Bolsonaro são frutos de um mesmo inconsciente coletivo. Um é o "sacerdote" e outro, o "cavaleiro", as cruzadas cotidianas de um Brasil medievalizado. Representam a catarse humana das necessidades imediatas, dos desejos simplórios, das vontades pragmáticas, da combinação do minimalismo em qualidade de vida e um rigor moralista que une ambos, mesmo em suas diferenças aparentes.
Ambos são mitos construídos pelo discurso midiático mais engenhoso. São pessoas que deveriam estar repousadas no esquecimento público. Chico Xavier, que de maneira irresponsável e vergonhosa deturpou a Doutrina Espírita, mudando a rota para a frente, através da influência iluminista nos ensinamentos espíritas originais, para a marcha-a-ré da catolicização aos moldes do movimento jesuíta do Brasil-colônia. Todo um discurso foi construído para que Chico Xavier fosse aceito com a complacência dada aos seus piores erros.
Afinal, Chico Xavier, por trás da imagem aparentemente amorosa e frágil de sua pessoa, e de uma suposta caridade que trouxe mais adorações a ele do que resultado social concreto - na verdade, essa "caridade" nunca produziu benefício real algum à população carente, atendida de maneira medíocre e paliativa - , era um sujeito ranzinza, reacionário e um moralista severo, e mesmo as "lindas frases" (na verdade nem tão lindas assim) quase sempre eram como um "AI-5 do bem", pedindo para as pessoas que sofressem desgraças pesadas que aceitassem tudo caladas e "confiassem em Deus", orando em silêncio para não perturbar o sono dos privilegiados.
As pessoas progressistas caem na armadilha do "velhinho frágil" e pensam que ele é o suprassumo do progressismo ideológico, sem perceber que as "lições" de Chico Xavier são de um conservadorismo retrógrado cheirando a mofo, e comprovadamente são ligadas à Teologia do Sofrimento, corrente medieval do Catolicismo. Essa constatação se deu porque, comparando ideias de Chico Xavier com as da Teologia do Sofrimento, se verificou uma identidade literal entre ambas.
E é esse conservadorismo que, num outro ângulo, torna-se receptivo a Jair Bolsonaro. Embora pareça chocante, para muitos, comparar Chico Xavier e Jair Bolsonaro, eles se unem num mesmo imaginário, no qual se sustenta uma moral humana que exige sacrifícios extremos, perda de direitos, aceitação de privações pesadas, renúncia da individualidade, complacência com os abusos dos algozes.
Os "inimigos" acabam sendo aqueles que não aderem à ideologia conservadora, patriarcalista, religiosa, capitalista, paternalista, moralista e restritiva da sociedade "de muitos sacrifícios". E a ascensão de Jair Bolsonaro, nesse tempo em que se esgota a tal "data-limite", é um alerta que, neste caso, aponta para até que ponto chegou a deturpação do "espiritismo" brasileiro e suas predições.
É claro que não é estranho Bolsonaro governar a tal "pátria do Evangelho" porque o projeto de um país comandando o mundo política e religiosamente pressupõe certo fascismo. A lógica original da doutrina kardeciana não é país algum dominar o mundo, porque um país é uma construção material, combinada por grupos de homens com interesses em comum, em nada refletindo em torno do mundo espiritual. Colocar um país acima dos outros, por mais que se evoquem supostos valores fraternais, é sempre um caminho perigoso que pode resultar em futuros flagelos e holocaustos.
No entanto, a ilusão "progressista" que se apoiava em torno da pessoa de Chico Xavier e sua imagem "bondosa" muito bem construída ao longo das décadas pela habilidade de Antônio Wantuil de Freitas, tutor do "médium" e em seu tempo presidente da FEB, e pela ajuda da TV Tupi e da Rede Globo, foi derrubada quando se viu que o "espiritismo" brasileiro se comprovou extremamente conservador.
Os "espíritas" apoiaram o golpe político de 2016, exaltando vários fenômenos e atividades. Exaltaram as passeatas do "Fora Dilma" a ponto de atribuir às mesmas uma suposta regeneração da humanidade. Exaltaram o Movimento Brasil Livre, o Vem Pra Rua e até os Revoltados On Line, vendo nos jovens envolvidos a personificação de "crianças índigos e cristais". Pediram para orarmos pelo "pacificador" Michel Temer. Pediram para aceitarmos as reformas trabalhista e previdenciária, que "educariam" os brasileiros a conter seu materialismo. E exaltaram a Operação Lava Jato, sob a desculpa de "combater a corrupção", ainda que sob critérios tendenciosos e seletivos.
É claro que, hoje, o "movimento espírita" está assustado com os rumos do país, e, sobretudo, com as acusações de apoio ao golpe de 2016. Alguns "espíritas" tentam desmentir, mas só depois de caírem em contradição. Eles agora se dizem injustiçados com tal acusação, mas em 2016, exaltando a Operação Lava Jato e as passeatas do "Fora Dilma" (na qual havia até gente pedindo a volta da ditadura militar e faixas exibindo símbolos nazistas), eles eram taxativos nas posições que hoje tentam desmentir.
O "espiritismo" brasileiro mostra, com isso, seu rol de contradições. Está pagando o preço caro da catolicização, que foi uma marcha-a-ré em relação aos ensinos originais da Codificação. O Espiritismo original mirava no Iluminismo e buscava andar na frente, rumo à coerência e ao desenvolvimento da lógica. O "espiritismo" brasileiro, apoiado na figura retrógrada de Chico Xavier, ele mesmo um beato ortodoxo e ultraconservador, andou para trás e regrediu aos parâmetros do Catolicismo jesuíta que prevaleceu no período colonial.
Agora, com a ascensão de Jair Bolsonaro, só mesmo questionando esse imaginário moralista, simplista e fantasioso que produz tanto pretensos filantropos como Chico Xavier quanto pretensos heróis como o candidato do PSL à Presidência da República, ambos marcados por um sentimento imediatista e cegamente emotivo de "salvação da pátria", para evitar que o Brasil mergulhe numa aventura fascista. Talvez fosse melhor abrirmos mão dessa fantasia de "coração do mundo" e "pátria do Evangelho", porque nunca é legal um país mandar no mundo, ainda que fosse o nosso país. Imperialismo nenhum é benéfico para a humanidade.
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